terça-feira, 9 de abril de 2013

Listas, literatura e sobressaltos.

Hoje, entrando na Livraria Cultura, corri rápida e despretensiosamente os olhos por sobre a gôndola circular em que se expõem os livros recém-lançados e me deparei, estupefata, com O Livro do Travesseiro de Sei Shônagon. Se algum dos fantasmas que assombram este blog já fuçou todos os seus cômodos, por certo viu que escrevi sobre ele em um dos primeiros posts (Leia aqui) e saberá que é um grande acontecimento encontrar esse livro, dessa maneira.
Trata-se da primeira tradução para o português, realizada pela Editora 34 e, ao que parece, bem séria e caprichada. Este O livro do (e não de) Travesseiro contou com o trabalho de cinco tradutores e traz pequenos textos de uma cortesã e escritora sobre o cotidiano do palácio imperial japonês do séc. X. Finíssima, a coisa.
Sem hesitar, peguei um exemplar, colei-o sobre o peito e andei, um pouco aturdida, alguns metros até encontrar uma cadeira que me permitisse desfrutar com algum conforto desse encontro fortuito com um dos livros dos meus sonhos.


Lá nos idos de 2008, no post a que me referi, explicava que meu interesse pela obra tem a ver com meu gosto por listas, pois  muito dos escritos  de Sei Shonagon são listas poéticas de coisas que ela qualifica como "belas que seduzem", "constrangedoras", "que provocam inveja" etc. Ainda se leem outros textos breves em que opina sobre  fatos, coisas e pessoas, os quais inicia com "Quanto a". Assim, temos textos com títulos como " Quanto a pássaros", "Quanto a montanhas", " Quanto aos tecidos da seda tramada", dentre outros. Esta forma de nomear suas próprias impressões da vida guarda uma delicada beleza, apesar de certa arrogância. O fato é que, não sei precisar por qual dos dois motivos,  as tais listas já me arrebatavam antes mesmo da leitura, só pelas notícias que tinha através do livro A lenda de Murasaki e do filme O livro de cabeceira.
Como dizia, procurei uma cadeira em que poderia ler confortavelmente e me sentei. Nesse momento, aconteceu algo muito interessante. Precisamente em frente à minha posição,vi um livro chamado A Vertigem das Listas, de Umberto Eco. Sem acreditar que o tema de tal obra também eram listas, apesar da obviedade do título, abri-o antes mesmo do livro fetiche que tinha nas mãos. Novo encantamento. Umberto Eco faz uma retrospectiva da história da arte e da literatura através de listas escritas e imagéticas, sendo, estas últimas, obras das artes plásticas que cuidam de enumerar coisas através de imagens para, segundo ele, expressar justamente a infinitude daquilo que se está a mostrar. Uma obra igualmente linda e de erudição para mim ainda inalcançável, por isso nem pensei em comprar.
Das tantas listas deliciosas nas quais estive imersa nesta tarde, destaco três que transcrevo abaixo. As primeiras são da Sei Shônagon e a última (apenas fragmentos) de Roland Barthes, extraída do livro de Eco.


Coisas agora inúteis que fazem lembrar seu passado glorioso

Coisas agora inúteis que fazem lembrar seu passado glorioso. Refinado tatame de bordas trabalhadas que já apresenta fios soltos. Biombo com pintura estilo chinês, escurecido e rasgado em algumas partes. Olhos cansados de um pintor idoso. Peruca de dois metros ou mais que ficou avermelhada. Tecido de seda tramada roxo claro avermelhado que acabou desbotando.
Pessoa decrépita que muito apreciava o jogo amoroso. Residência de bom gosto cujas árvores se incendiaram. O lago continua o mesmo, as plantas aquáticas flutuantes se alastraram.

Coisas que são desdenhadas 

Coisas que são desdenhadas: muros danificados, pessoas conhecidas por seu coração bom demais.



***

Roland Barthes por Roland Barthes (1975)

Gosto de: salada, canela, queijo, pimentões, pasta de amêndoas, cheiro de feno cortado (gostaria que um especialista fabricasse tal perfume), rosas [...], os irmãos Marx, o serrano às sete horas da manhã, saindo de Salamanca etc.
Não gosto de: lulus brancos, mulheres de calças, gerânios, morangos, cravos, Miró, tautologias, desenhos animados [...], as cenas, as iniciativas, a fidelidade, a espontaneidade, as noitadas com gente que não conheço etc.
Gosto, não gosto: isso não tem importância alguma para ninguém e, aparentemente, não tem sentido. No entanto, tudo isso quer dizer: meu corpo não é igual ao seu. Assim, nessa espuma anárquica de gostos e desgostos, espécie de picadinho distraído, desenha-se pouco a pouco a figura de um enigma corporal atraindo cumplicidade ou irritação. Aqui começa a intimidação do corpo, que obriga o outro a me suportar liberalmente, a ficar silencioso e cortês diante de gozos ou recusas que não partilha. (Uma mosca me irrita, eu a mato: a gente mata o que nos incomoda. Se eu não tivesse matado a mosca, teria sido por puro liberalismo: sou liberal para não ser assassino.)


Eu, que sou das listas, tento achar alguma poesia nelas. Não me agrada apenas suportar o que, de ordinário da vida, elas refletem. Por isso, esses textos.