sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Morte à moda antiga


Comecei a escrever esse texto depois de ter visto o filme A Partida (Japão, 2008), muito terno e leve, mesmo ao abordar os fatos da morte. Emocionei-me assistindo àquela história sobre achar o singelo, a realização íntima onde há medo e mistério. Gostei especialmente porque me senti menos bizarra por ter testemunhado mortos e enterros desde cedo.
Morrer já era assunto nos meus sete anos. Aos sete, na pequena cidade, onde nasci, me dei conta de que a morte desfilava em frente a minha casa. Cercada por um quase invariável número de pessoas, dentro de um caixão adornado de prateado, orientava o caminho de um grande estandarte roxo e marcava o ritmo da banda de metais – sax, trombone e tuba - que acompanhava o cortejo a caminho do cemitério. Quando se noticiavam velório, agarrava na mão da Gardênia, flor mais velha entre as meninas que brotavam na minha rua, e ia ver o morto da vez: um velho, uma criança afogada ou uma mulher parida e seu recém-nascido. Sabia a morte uma rotina naquele lugar cercado de sertão e fome, especialmente de velhos e bebês, mas me chocava demais os afogados e os homens adultos. Levados por causas violentas que revelavam a fragilidade indistinta diante do rio, da estrada ou da bala, faziam a comoção na cidade mais intensa e, por isso, tinha sempre muitas mulheres em redor do velado derramando um choro inconformado e barulhento sobre panos rotos. Eu ia vê-los, aos sete, levada na corrente do interesse de toda a gente que não tinha muita ocupação e, pra isso, me organizava com minhas amigas da vizinhança, as mesmas de rodar bambolê, brincar de casinha e pular elástico e do mesmo jeito que fazia quando ia à praça ou ao circo ou tomar banho de rio ou a um aniversário ou aos festejos de dezembro. Saia de casa sem muito alarde, coisa fácil para a filha do meio de uma família grande; percorria uma longa calçada e ia formando bando à medida que mudava o nível dos batentes - cada casa tinha a calçada em uma altura, como uma escada suave e larga. Íamos às escondidas, mas nunca fomos proibidas explicitamente de ver os mortos. Nem castigo ganhávamos, só lamentos e uma advertência ambígua vinda de nossos pais, confusos por achar terrível que nos interessássemos, mas cientes de que a vida na cidade pequena se fazia com fatos dessa ordem: do nascer, do amar, do plantar, do partir e do morrer. Não tinham como nos negar as lições que vinham com esses eventos e nos proibir de perscrutar seus mistérios. Íamos como a um espetáculo, mas sabíamos da autenticidade da dor que envolvia cada caso e nos consternávamos, silenciando frente ao pranto, abaixando a cabeça na presença do morto, mas de jeito nenhum deixávamos de olhar cada detalhe da cena e tentar satisfazer cada gota da curiosidade que tínhamos sobre o que era a vida, a carne, o sofrimento, não sei bem. Quando, no centro do acontecimento, havia outra criança, vinha um adulto nos mandar de volta pra casa. Temia-se o peso da descoberta de que nem toda criança será sustentada pela vida. E essa descoberta assusta. Uma das situações mais desconcertantes em toda minha vida foi receber a pergunta, acompanhada de um olhar desamparado de minha filha, depois de saber, aos oito anos, que uma colega da escola havia sucumbido a uma crise de asma: “Mãe, então criança morre?”. Foi terrível testemunhar essa constatação.

Não lamento essa minha mórbida experiência na infância, embora a vida de hoje, a cultura urbana, a cultura do sucesso, a idéia fixa de felicidade, a vaidade, o sexo mítico, neguem o assunto da morte, do envelhecer, do brochar, do perder. Meu lamento maior é pelo nosso despreparo para estas coisas, pois elas estão a nossa frente o tempo inteiro, numa economia que nega sua realidade, mas sustenta a audiência da TV, só que de forma pasteurizada, mais espetacularizada, produzidas de forma que não pareçam o que são: perecimento, transitoriedade e perda, mas também aprendizado, sentimento, transformação, humanidade. O Arnaldo Antunes diz que, hoje, envelhecer é moderno. E eu digo que falar da morte é vintage.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

...

As cadeiras já não giram.

Ignoro-as.

Sem fixar-me, sigo.

Não olho para o círculo

miro o ponto distante

na altura do nariz.


Minha caminhada é a pé.

Cato pedrinhas

perco-as em seguida.

Vem a manhã

e já esqueço a noite.


Cuidadosa

tateio o fundo do saco.

Sinto minhas comichões bem vivas:

temos fôlego

elas e eu.


Deixa chover no destino!

Que nos reguem!

A gente sobrevive de esmos

derivas e sorte!